Campus de Goiabeiras - Vitória

Cães Errantes

OS CÃES CAMINHAM À MARGEM, APENAS ELES COMEM E MIJAM SEM PUDOR EM ESPAÇOS PÚBLICOS

por Luana Cabral*

A figura fantasmagórica da mulher que penteia os cabelos ao lado da cama, onde dormem seus filhos, não retornará ao filme, abandonando a trama tal qual abandonou sua prole. Sua imagem ecoará nas duas outras personagens femininas que atravessarão a vida das crianças e de seu pai. Contudo, e talvez por isso, ela não ecoa; as mulheres em sequência não são continuidade, mas sim ruptura. Para além de qualquer simbolismo, a presença de cada uma delas apenas muda as formas de atuação do pai, por representarem obstáculos distintos postos frente à sua tentativa voraz de sobrevivência, de resistência. Cães Errantes segue não respeitando nossos desejos, frustrando e maltratando o espectador posto de joelhos à sua frente, como que lhe dizendo: “o que você procura não está aqui”.

Não digo que o prazer nos seja completamente negado, posto que Tsai Ming Liang parece ter reservado para seu anunciado último longa-metragem o texto mais sensível e tocante de seu cinema e alguns dos closes mais impressionantes que já foi capaz de realizar. É impossível fazer vista grossa para a emoção latente em Cães Errantes, literalmente à flor da pele, justamente porque a maior parte de sua grandeza provém de um só corpo, e de um rosto. O personagem de Lee Kang-sheng, neste filme, é a ruína corporificada. Assim como ocorre com a casa a qual ele e seus filhos irão habitar, já ao final do filme, sua estrutura física, suas linhas faciais já envelhecidas e seu semblante desesperado são a denúncia do tempo que passou e de suas intempéries. Do inevitável desgaste trazido pelos anos, resta um ser cambaleante, bêbado, atordoado, incapaz de cuidar de si próprio e de seus filhos – não cabe aqui falar sobre família, uma vez que esse conceito permanece indecifrado pelo filme. Poderia, no lugar disso e pelo bem do trocadilho possível, chamar esse núcleo composto pelos três de matilha. Apesar dessa dimensão emocional e da não completa ausência narrativa, volto minha atenção para o caráter autodestrutivo da trama, que se desenvolve calcada em pequenas mortes, nada menos que fugas de si própria. Nos prendemos à tentativa de juntar o que conseguimos apreender de cada um dos diferentes blocos do filme, buscando que algo faça sentido, sem lembrar da armadilha realista de Tsai Ming Liang que nos reafirma, estando nós prontos ou não para entender, que nada faz.

Voltando à questão do corpo, muito chama a atenção a forma como a mise-en-scène dialoga com a performance e a alimenta, pondo, por hora, um ponto final no embate entre as duas. A construção espacial sempre foi um trunfo na obra do diretor tailandês, principalmente pela forma como a atuação se torna um ponto de fuga dos espaços extremamente estruturados, hiperconstruídos, vistos sob perspectivas semi-cambaleantes e distorcidas (Adeus, Dragon Inn, A Passarela se Foi). O corpo, geralmente de Lee Kang-sheng, é sempre o que há de vivo no horizonte e a ele é dada inegável liberdade para ser. Aqui, essa liberdade parece excessiva e incomoda mais do que anteriormente, seja pela natureza de sua ação ou pela própria ausência dela. Respectivamente, faço referência a duas sequências emblemáticas do filme, a primeira sendo a que o pai, completamente alcoolizado, ama, destrói e devora uma cabeça de repolho colocada pelos filhos em sua cama. A segunda, talvez a mais ambígua de todas as sequências, pode ser definida como a contemplação ao mural encontrado nos escombros, momento protagonizado pelo pai e pela última mulher a ser introduzida na trama. Se na primeira a passionalidade do gesto é o que incomoda, na segunda é a falta de ação\reação que torna o plano-contraplano estranho. Embora essa contemplação preencha um momento anterior do filme tendo, portanto, seu efeito já sido antecipado, ela não perde sua força devido aos caminhos narrativos que culminaram naquele momento e, sobretudo, pela insistência em se fixar exaustivamente àquele olhar, sem saber nem mesmo qual é a imagem que o aprisiona, até que venha o contraplano, no momento em que ele já não é mais desejado. O plano dos dois atores é uma fissura no cinema; a partir de algum ponto, também este indeterminado, não existe corte possível que o justifique, e o final se dá pela desistência.

Penso com carinho na hipótese de que o incômodo causado pelo filme possa ferir o ego e a arrogância de cinéfilos calejados, principalmente daqueles acostumados a comprarem mais a ideia dos filmes à medida que estes se afastam do gosto popular e se aproximam de qualquer coisa que lhes pareça valiosamente estranha. Contudo, os signos que tornaram Tsai Ming Liang um ícone para essa parcela dos espectadores, mas não apenas para ela, estão, em Cães Errantes, ao menos parcialmente presentes. O desconforto provocado pelo escatológico é sutil, mas ainda existe, assim como a obsessão por banheiros públicos contemplada por, no mínimo, uma sequência do filme, na qual a atendente do supermercado lava o cabelo da filha de Lee Kang-sheng na pia do banheiro do estabelecimento onde trabalha. O corpo marginal não cede ao controle social simbólico imposto em relação às suas funções fisiológicas e se volta completamente à sua própria busca pela sobrevivência, o que é desconfortável para quem o assiste, por mais consciente dos meios e mecanismos sociais que seja esse espectador. O momento em que o pai e seus dois filhos fazem suas refeições na rua enquanto se abrigam da chuva – aliás, também esta entidade simbólica do cinema de Tsai Ming Liang pontua dramaticamente Cães Errantes – provoca a união forçada dos três e esboça algum vínculo afetivo entre eles, já que, mal podendo se movimentar, eles estão presos entre si. Como tanto desejamos, cria-se um laço, mas apenas para que ele seja desfeito em seguida. E não poderia deixar de mencionar o close-up que revela a cantoria de Lee Kang-sheng: pela surpresa de um rosto-paisagem e pelo que ele é capaz de esconder ou revelar, pela lágrima densa que permaneceu anos em formação e que, finalmente, toca a face.

 

*Luana Cabral é estudante do curso de Cinema e Audiovisual da UFES.

Cães Errantes (Jiao You), de Tsai Ming-Liang (Taiwan/França, 2013, cor, 138') está em cartaz até 02/12 no Cine Metrópolis nos seguintes dias e horários:

17h (segunda e terça)
15h (apenas quarta)
19h30 (apenas terça)

 

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