Campus de Goiabeiras - Vitória

O cinema brasileiro e o futebol*

por Vitor Graize**

No ano de 1895, quando as exibições públicas de cinema surgiram na França, Charles Miller trazia para o Brasil a nossa primeira bola de futebol. O cinema chegou no ano seguinte e desde então esses dois elementos identitários se cruzaram inúmeras vezes na trajetória de formação da cultura brasileira.

Mas de que forma, ao longo dessa história compartilhada pelo esporte e pela arte, o cinema e o audiovisual brasileiro viram o jogo?

Seja no registro dos matchs nacionais e internacionais dos cine-jornais, nos dramas sociais da Era Vargas, no dialeto imagético criado pelo Canal 100, em documentários críticos dos anos 60 e 70, até a recente onda de vídeos relacionados à Copa do Mundo de 2014 (penso nos vídeos "amadores" que buscaram revelar aspectos da segregação social, racial e também os fatos pitorescos que marcaram o último campeonato mundial), o audiovisual brasileiro contribuiu tanto para amplificar o imaginário do esporte mais popular do país, de seus craques, mitos e dilemas, quanto para evidenciar os aspectos subterrâneos omitidos pela cobertura pasteurizada da televisão.

Para além do mero registro informativo sobre as partidas, difundidos nas salas de projeção na forma de cine-jornais, formato pioneiro a difundir a cultura desse esporte, o futebol apareceria representado no cinema de ficção ainda na década de 1930, época que também marca o início das disputas mundiais entre nações. Primeiro em O Campeão de Foot-Ball, de 1931, dirigido pelo humorista Genésio Arruda, que além de ser o primeiro filme ficcional sobre o tema, lançaria, logo de saída, a estratégia de apresentar jogadores de renome como parte do elenco. Em seguida, no melodrama amoroso "Alma e Corpo de uma Raça", de Milton Rodrigues, produzido pelos Estúdios Cinédia em 1938, no qual dois jogadores disputavam a vaga no time titular e também o amor de uma mulher - no elenco estava, entre outros, o craque Leônidas da Silva; e depois, no drama social Futebol em Família, de Ruy Costa, lançado em 1939, no qual um pai de classe média rejeita o filho após este assinar contrato como jogador profissional – redimido de culpa e perdoado quando o salário de futebolista é usado para bancar os estudos de medicina.

Um outro modo de olhar surgiria em 1957 com a criação do Canal 100, um dos mais importantes cine-jornais brasileiros - mídia que, como se sabe, era exibida nas sessões antes do filme principal. Câmera rente ao gramado, cenas em velocidade lenta, desenho sonoro valorizando a torcida, os close ups nas faces tensas dos torcedores, o movimento completo e detalhado das jogadas, dos passes, dos dribles, dos goals, os corpos, enfim, no tempo precioso da montagem - pela primeira vez os elementos primordiais do jogo eram descritos com uma forma fílmica.

Chegam os anos de 1960 e a relação de amor do povo brasileiro com o jogo, amplificada após o bicampeonato mundial, estará bem representada no filme de futebol mais importante já realizado no Brasil. O documentário Garrincha, Alegria do Povo, de Joaquim Pedro de Andrade (1962), criado no ventre do Cinema Novo, com sua premissa de representação do povo na tela, toma a figura de Manoel Francisco dos Santos, o Mané Garrincha, como modelo do povo brasileiro: homem simples, alegre, com um talento natural, fruto e ao mesmo tempo alheio aos problemas do país (importante anotar que estamos no período imediatamente anterior ao Golpe Civil-Militar de 1964). Garrincha, que usa com maestria o texto poético de Armando Nogueira, baluarte da crônica esportiva, está localizado a meio caminho entre o Cinema Direto, uma novidade na forma de retratar a realidade em filme, e o documentário histórico de montagem que utiliza grande volume de material de arquivo – principalmente fotografias e imagens em movimento.

O Cinema Direto, vertente do documentário participativo que valoriza os depoimentos, a câmera próxima aos objetos e a representação da realidade social com intervenção do realizador, ganharia força com o projeto “Brasil Verdade”: experiência de produção cinematográfica que retratou em quatro médias-metragens alguns aspectos da sociedade brasileira. Um deles, Subterrâneos do Futebol, de Maurice Capovilla (1964-65), tenta dar conta da “paixão estranha que toma conta do brasileiro” tanto nos grandes estádios quanto nas várzeas da periferia. O "estranho", anunciado mais uma vez em voz over, sobre imagens da movimentação dos torcedores em domingo de jogo, situa o futebol à distância, como válvula de escape, fenômeno que precisa ser "explicado" - seja por vozes populares, que serão intimadas a dizer porque vão ao estádio, ou por vozes eruditas, médicos, dirigentes, técnicos.

Em seus minutos finais, Subterrâneos conclui sua tese sobre os "problemas humanos escondidos do público" com um depoimento que reforça o alheamento do povo aos problemas criados pelos dirigentes, seguido de planos fechados dos rostos dos torcedores em montagem paralela com cenas de violência dentro e fora do gramado – jogadas que terminam mal, uma briga na arquibancada e a invasão de campo após o apito final. Confusão e silêncio após a pergunta final "quem ganha com tudo isso?".

Passe Livre, longa-metragem de Oswaldo Caldeira (1974), detém-se sobre alguns dos aspectos que os dois filmes anteriores apresentam: a curta carreira de jogador, a passagem veloz da fama ao esquecimento, o sonho de crianças e jovens que buscam o sucesso nos campos e, principalmente, a situação do jogador de futebol como trabalhador, preso aos clubes pelo passe. O filme de Oswaldo Caldeira, produzido e lançado no período mais pesado da Ditadura, parte da história de Afonsinho, que obteve na justiça o direito a seu passe, para falar de trabalho, luta e liberdade. Uma cena é marcante: Barbosa, o goleiro da Copa de 1950, sentado na arquibancada do Maracanã, fala do doloroso caminho da fama ao fracasso. Num corte, vemos as filas de torcedores na bilheteria do estádio. A imagem se aproxima com um lento zoom in enquanto a voz em off narra a trajetória do goleiro que então, esquecido, se vê forçado a trabalhar como bilheteiro.

Um salto para o período da Retomada do cinema brasileiro vai nos apresentar o longa “Boleiros - Era uma vez o Futebol“ (1998), de Ugo Giorgetti (seguido, seis anos depois, por “Boleiros 2 - Vencedores e Vencidos”), que por meio de uma encenação frágil reconstrói, em uma conversa de bar de um grupo de amigos ligados ao mundo da bola, crônicas do futebol. Enquanto isso, o documentarista João Moreira Salles, em parceria com Arthur Fontes, filmava para a TV fechada a série em três episódios intitulada simplesmente “Futebol”, um novo olhar sobre velhos temas: o sonho de jogar, a carreira profissional e o declínio.

Nos anos 2000 veríamos o futebol como tema de fundo em alguns dos filmes de maior destaque: a Copa de 1970 e o governo militar sob a ótica de uma criança cujos pais, militantes de esquerda, estão desaparecidos (O Ano em que meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger, de 2006), um jovem que tenta a sorte nas peneiras e a mãe, torcedora fanática, em uma família da periferia buscando melhores dias (Linha de Passe, de Walter Salles e Daniela Thomas, de 2008), por exemplo.

Enquanto Zico e Pelé, dois dos nossos maiores craques, tinham as histórias adaptadas para as telas com pouco talento (em Zico, de 2002, e Pelé Eterno, de 2004), o curta-metragem brasileiro explorava o tema sob vários aspectos: a crítica social em Tipitunga, de Jefinho Pinheiro e Patrick Tristão (2003); o folclore em torno do jogo e o personagem em Mauro Shampoo – Jogador, Cabelereiro e Homem, de Leonardo Cunha Lima e Paulo Henrique Fontenelle (2005); a paixão sem glamour em Faltam 5 Minutos, de Luiz Alberto Cassol (2005); até, finalmente, o marcante Geral, de Anna Azevedo (2010), cujos fotogramas retém fixados os últimos momentos da geral antes da reforma do Maracanã, corpo de concreto que guardava a alma do nosso futebol, nossa forma de amar e de torcer.

Campo de Jogo, de Eryk Rocha, lançado em 2014, busca reencontrar, entre as ruínas, a paixão pelo jogo enquanto acompanhamos a mercantilização do esporte em nome dos interesses de uma entidade financeira transnacional. Para o filme, ela está não está nos artifícios narrativos da transmissão ao vivo mas nesses campos de peladas onde há muito tempo foi plantada e no qual cresce a cada disputa de um campeonato de favelas do Rio de Janeiro. E o cinema então se transforma na pulsação e no bailado dos corpos, no suor do esforço sob o sol, na plasticidade e no sofrimento de toda a disputa. Por amor, dizem, somos capazes de superar tudo. Mas quem ganha com tudo isso?
 

*Artigo publicado no Caderno Pensar, do jornal A Gazeta, em 21 de novembro de 2015.

**Vitor Graize é diretor, produtor audiovisual e programador do Cine Metrópolis.

O Laboratório de Crítica é um espaço aberto a colaborações com artigos, análises e críticas sobre filmes, sessões, ciclos e outros temas relacionados ao cinema e ao audiovisual e às atividades do Cine Metrópolis. Para colaborar, envie um email para cinema [at] ufes.br

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